Eu nunca fui a filhinha da mamãe; em vez disso, eu era a cara
do meu pai. Todos diziam que nossos rostos eram quase idênticos; que nossos
olhos tinham o mesmo tom de castanho; que nossas constituições físicas (meu
único arrependimento) tinham vindo da mesma forma. Mas, além da aparência
física, nossas almas pareciam estranhamente conectadas; havia uma ligação tão
intensa entre nós que, às vezes, achava que éramos almas gêmeas.
Quando meu pai faleceu, eu tinha trinta e três anos, era casada
e mãe, mas, independente disso, o impacto de sua morte foi avassalador, apesar
das três décadas de maturidade, do meu casamento e da maternidade.
— Quantos anos ele tinha? – os mais insensíveis perguntavam,
como se a idade de um pai que falece fosse importante (a implicação era a
seguinte: tudo bem sofrer se ele se foi em uma idade tenra, mas, se ele já era
idoso, a autorização para ficar de luto está negada).
E, na verdade, ele tinha somente sessenta e dois anos, novo
demais para deixar este mundo.
Um dos costumes mais sábios, belos e reconfortantes do judaísmo
é a shivá: os sete dias de
luto oficial durante os quais se dá ao enlutado um contexto, parâmetros e, mais
importante, a permissão para sofrer. Durante esse período, a família fica
enclausurada em casa enquanto visitantes bem-intencionados vêm oferecer
solidariedade e consolo.
No quarto ou quinto dia da shivá, houve uma pausa
de visitantes e eu aproveitei para me refugiar na cozinha. Foi então que eu
notei, pela primeira vez, a pilha de papéis, escritos com a tão amada e familiar
caligrafia de meu pai, amontoados junto com outros papéis sobre a mesa da
cozinha. Comecei a remexer nos papéis, com meus dedos tremendo. Somente alguns
dias antes, eu não teria dirigido um segundo olhar àqueles papéis, mas agora
eles haviam se transformado em preciosas relíquias. Aquelas folhas passaram a
ter um novo significado somente pelo fato do meu amado pai ter tocado nelas com
suas mãos calejadas. Havia a sua assinatura rabiscada nas margens do papel e
manchas de café nas pontas. Apenas alguns dias antes, meu pai estava vivo. Agora
ele se fora e, ironicamente, tudo o que sobrara para testemunhar a sua
existência eram alguns objetos inanimados e tranqueiras sem vida.
Eu remexi nos papéis, buscando pistas dos seus últimos dias. O
que eu queria? Que testamento eu esperava encontrar? Talvez, como qualquer filho
enlutado (não importa a idade), eu buscava algum sinal de que toda a sua força
vital não havia partido completamente.
A maioria dos papéis era sem importância, e eu os coloquei de
lado, impaciente. Mas então eu achei uma folha que fez minhas mãos tremerem e
meu coração parar.
Era um poema em iídiche, que meu pai (um escritor fluente em
hebraico e iídiche) havia escrito pouco antes de morrer. Um poema sobre o qual
ninguém sabia e que talvez jamais teria sido descoberto se eu não tivesse
resolvido remexer na pilha. Fiquei paralisada enquanto lia os versos que tão bem
expressavam o seu desespero no final de sua vida. Em uma tradução grosseira, o
poema dizia:
O telefone permanece mudo
Desejando tocar desesperadamente
Na esperança de trazer notícias do mundo
Para aquele que aguarda uma voz amiga
Mas o telefone não toca, ele não tem escolha
Ninguém está discando o seu número para dizer olá
Onde estão todos aqueles que eu conhecia?
Todos se esqueceram de mim, a linha não toca
O telefone está abandonado e, censurado, permanece calado.
Conforme eu lia o poema, meu coração sofria por meu pai que,
aparentemente, se sentira tão sozinho nos últimos dias de sua vida. E eu queria
que ele soubesse o quão errado ele estava sobre a sua posição na sociedade –
como não havia mais lugar para se sentar em seu funeral, abarrotado de pessoas
que o amavam e admiravam; quantas cartas de solidariedade, telefonemas, cestas e
flores chegavam em sua casa para demonstrar a angústia pela sua morte.
Pensei na ironia das últimas palavras de meu pai: agora o
telefone não parava de tocar, com ligações solidárias daqueles que o amaram e
sentiriam a sua falta para sempre. E, de repente, como se um feitiço tivesse
sido lançado em mim, saí da minha cadeira na cozinha e fui para o meu quarto,
onde comecei a escrever um poema. O título do poema do meu pai era "O telefone
silencioso". O meu, por sua vez, se chamava "O telefone ocupado: uma resposta".
Ah, pai; o telefone não pára de tocar
Conforme as pessoas ligam de todos os lugares, cantando a sua
glória
Falando de sua grandeza, de seus talentos
Com suspiros no coração e lágrimas sem fim
Uma tragédia, uma pena que você nunca sentiu
O amor e a estima de todos
E eu devo perguntar a eles: será que tudo isso não deveria ter
sido dito faz tempo
Para a pessoa que ainda precisava ouvi-lo e que ainda... não
sabe?
Esta é a ironia da raça humana: nosso pecado é a espera
Nós somente dizemos o que sentimos quando já é tarde
demais.
Quando terminei de escrever o poema, saí de um estado mental
que alguns chamariam de devaneio – e outros, de torrente –, mas que eu sentia
ser algo mais parecido com um transe. Olhando para o papel sobre o meu colo,
sacudi minha cabeça, sem acreditar. Eu não estava incrédula por ter escrito um
poema (eu escrevia poesia desde os oito anos de idade); também não estava
atônita por ter escrito um poema logo durante a shivá. Não, não era
nada disso que me fazia suspirar de admiração com a autoria: o que me fazia
tremer de medo era o fato de que eu, Yitta Halberstam, com quem todos implicavam
devido ao iídiche mal falado; que mal sabia escrever uma simples frase na língua
de seus antepassados, havia acabado de escrever um poema inteiro em iídiche.
Meus pais sempre falaram em iídiche um com o outro, mas quando
eu era pequena, em Pittsburgh, eu fiquei muito confusa com a dissonância das
duas línguas: o iídiche usado exclusivamente em casa e o inglês, no resto do
mundo. Quando eu tinha dois anos e meio e ainda mal sabia falar algumas palavras
em ambas as línguas (como as coisas mudaram!), o pediatra recomendou que minha
mãe usasse exclusivamente o inglês ao falar comigo, já que eu parecia estar
confusa.. Em apenas algumas semanas, eu já falava frases completas em inglês,
mas o padrão já estava estabelecido e meus pais nunca mais voltaram a falar em
iídiche comigo.
Ainda assim, aqui estou eu hoje, com 33 anos, olhando para o
primeiro poema que eu escrevi em iídiche e que, estranhamente, estava
impecável.
Eu pisquei. Estava assustada, assombrada. Como isso tinha
acontecido? Eu não conseguia entender a mim mesma. Mais tarde, naquele mesmo
dia, quando mostrei para minha mãe e meus irmãos, eles me olharam com suspeita.
Eu não era capaz de escrever aquilo em iídiche – eles sabiam disso tanto quanto
eu. Mesmo assim, todos viram quando eu me recolhi sozinha em meu quarto e
reapareci com um poema. Estava claro que ninguém havia me ajudado – então de
onde havia surgido aquele poema?
Dois dias depois, eu estava mais uma vez na cozinha durante um
intervalo entre as visitas quando comecei a inspecionar o lugar com novo
interesse. Afinal, era ali que meu pai sempre trabalhara. Aquela cozinha caseira
fora elevada em significado e importância: ela havia se tornado um santuário. E
agora eu passeava por aquela cozinha de sempre com um olhar renovado, e percebi
algo que eu nunca havia notado antes: o abajur de meu pai. Era um abajur de
estilo antigo, que iluminava os manuscritos dele enquanto ele trabalhava e que
havia sido empurrado para um canto. Eu achei que aquilo parecia muito desolador.
O que acontece com os pertences de um homem
depois que ele se vai?, pensei.
Será que, de alguma forma, eles também sentem a
perda?
Meu estado mental de dois dias atrás voltou. Mais uma vez, eu
fora transportada para outro universo, sob a influência de uma elevada
consciência que me envolveu. Mais uma vez, como em um transe, eu me levantei,
peguei um papel e uma caneta e fui para o quarto, onde escrevi um segundo poema,
desta vez chamado "O Abajur". Eu escrevi:
O abajur que meu pai usava está sentando shivá sozinho
Ninguém presta atenção ao seu lamento; ninguém vê o seu
suspiro.
Ele não compreende aonde foi seu amigo; o homem com quem eraprofundamente
ligado
O homem com as palavras de fogo: onde será que ele está agora?
Era sua brilhante luz que ajudava o homem a criar
Essa era a sua missão de vida, iluminar.
A parceria, porém, de repente, acabou
E, dos dois, somente a luminária ficou, uma lembrança sem
vida.
O seu objetivo, para o qual nascera, estava terminado
E agora ele é empurrado para um canto, esquecido e
abandonado.
Ninguém o vê, ninguém precisa dele, ele está machucado
Contra a sua vontade, sua missão foi concluída.
A lâmpada se extinguiu; e sua luz se foi.
A luz de meu pai se extinguiu
E agora estamos envoltos por uma noite sem fim.
Quando terminei o segundo poema, olhei para ele ainda mais
surpresa do que quando eu escrevera o primeiro. Mais uma vez, ele havia sido
escrito em um iídiche literário, um iídiche que eu não sabia, um iídiche que eu
não possuía. Se não fora eu quem escrevera, então quem o teria feito?
Uma semana depois, o Algemeiner Journal, um
semanário em iídiche no qual meu pai trabalhara tanto como editor como
colunista, publicou meus dois poemas. Todos aqueles que não eram meus amigos
íntimos e que não sabiam do meu histórico lingüístico me parabenizaram e
elogiaram o trabalho. Mas aqueles que me conheciam mais intimamente, e que já
haviam me escutado falar naquela mesma língua que estava agora impressa no
papel, me abordaram pelas ruas do Brooklyn céticos.
O confronto acontecia mais ou menos assim:
— Está bem Yitta, eu já ouvi você falar em iídiche. E eu sei
que você nunca escreveu um só poema em iídiche. Então, fale a verdade... quem
escreveu os poemas ?
E, já tendo me perguntado essa mesma questão nas noites escuras
em que pensava em meu pai, eu só poderia responder a todos com aquilo que eu
sabia ser a verdade absoluta:
— Meu pai.
A Cabala afirma que, durante os sete dias da
shivá, a alma daquele
que partiu vagueia pela sua casa, para observar os membros de sua família em uma
última demonstração de saudade e para tentar garantir o bem-estar deles. O
espírito ainda não está em transição e, de uma maneira misteriosa, está presente
com a família enlutada.
Ao final do período de shivá, há um costume
entre os judeus ortodoxos de sair da casa e dar uma volta em torno do
quarteirão, acompanhando a alma do falecido que parte do domínio de sua família
para sempre.
Eu nunca escrevera um poema em iídiche antes da morte do meu
pai, nem escrevi depois. Ao pensar em todas as possibilidades racionais de como
palavras que eu mal sabia e quase nem reconhecia poderiam ter sido escritas por
mim, eu só consegui pensar em uma explicação que fizesse sentido: os poemas eram
de autoria de meu pai, seu último grande esforço criativo e sua maneira
particular de me dizer adeus.
Yitta
Halberstam
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