segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Pequenos Milagres Judaicos

Pequenos Milagres Judaicos 2


Eu nunca fui a filhinha da mamãe; em vez disso, eu era a cara do meu pai. Todos diziam que nossos rostos eram quase idênticos; que nossos olhos tinham o mesmo tom de castanho; que nossas constituições físicas (meu único arrependimento) tinham vindo da mesma forma. Mas, além da aparência física, nossas almas pareciam estranhamente conectadas; havia uma ligação tão intensa entre nós que, às vezes, achava que éramos almas gêmeas.

Quando meu pai faleceu, eu tinha trinta e três anos, era casada e mãe, mas, independente disso, o impacto de sua morte foi avassalador, apesar das três décadas de maturidade, do meu casamento e da maternidade.

— Quantos anos ele tinha? – os mais insensíveis perguntavam, como se a idade de um pai que falece fosse importante (a implicação era a seguinte: tudo bem sofrer se ele se foi em uma idade tenra, mas, se ele já era idoso, a autorização para ficar de luto está negada).
E, na verdade, ele tinha somente sessenta e dois anos, novo demais para deixar este mundo.
Um dos costumes mais sábios, belos e reconfortantes do judaísmo é a shivá: os sete dias de luto oficial durante os quais se dá ao enlutado um contexto, parâmetros e, mais importante, a permissão para sofrer. Durante esse período, a família fica enclausurada em casa enquanto visitantes bem-intencionados vêm oferecer solidariedade e consolo.
No quarto ou quinto dia da shivá, houve uma pausa de visitantes e eu aproveitei para me refugiar na cozinha. Foi então que eu notei, pela primeira vez, a pilha de papéis, escritos com a tão amada e familiar caligrafia de meu pai, amontoados junto com outros papéis sobre a mesa da cozinha. Comecei a remexer nos papéis, com meus dedos tremendo. Somente alguns dias antes, eu não teria dirigido um segundo olhar àqueles papéis, mas agora eles haviam se transformado em preciosas relíquias. Aquelas folhas passaram a ter um novo significado somente pelo fato do meu amado pai ter tocado nelas com suas mãos calejadas. Havia a sua assinatura rabiscada nas margens do papel e manchas de café nas pontas. Apenas alguns dias antes, meu pai estava vivo. Agora ele se fora e, ironicamente, tudo o que sobrara para testemunhar a sua existência eram alguns objetos inanimados e tranqueiras sem vida.
Eu remexi nos papéis, buscando pistas dos seus últimos dias. O que eu queria? Que testamento eu esperava encontrar? Talvez, como qualquer filho enlutado (não importa a idade), eu buscava algum sinal de que toda a sua força vital não havia partido completamente.
A maioria dos papéis era sem importância, e eu os coloquei de lado, impaciente. Mas então eu achei uma folha que fez minhas mãos tremerem e meu coração parar.
Era um poema em iídiche, que meu pai (um escritor fluente em hebraico e iídiche) havia escrito pouco antes de morrer. Um poema sobre o qual ninguém sabia e que talvez jamais teria sido descoberto se eu não tivesse resolvido remexer na pilha. Fiquei paralisada enquanto lia os versos que tão bem expressavam o seu desespero no final de sua vida. Em uma tradução grosseira, o poema dizia:

O telefone permanece mudo
Desejando tocar desesperadamente
Na esperança de trazer notícias do mundo
Para aquele que aguarda uma voz amiga
Mas o telefone não toca, ele não tem escolha
Ninguém está discando o seu número para dizer olá
Onde estão todos aqueles que eu conhecia?
Todos se esqueceram de mim, a linha não toca
O telefone está abandonado e, censurado, permanece calado.

Conforme eu lia o poema, meu coração sofria por meu pai que, aparentemente, se sentira tão sozinho nos últimos dias de sua vida. E eu queria que ele soubesse o quão errado ele estava sobre a sua posição na sociedade – como não havia mais lugar para se sentar em seu funeral, abarrotado de pessoas que o amavam e admiravam; quantas cartas de solidariedade, telefonemas, cestas e flores chegavam em sua casa para demonstrar a angústia pela sua morte.
Pensei na ironia das últimas palavras de meu pai: agora o telefone não parava de tocar, com ligações solidárias daqueles que o amaram e sentiriam a sua falta para sempre. E, de repente, como se um feitiço tivesse sido lançado em mim, saí da minha cadeira na cozinha e fui para o meu quarto, onde comecei a escrever um poema. O título do poema do meu pai era "O telefone silencioso". O meu, por sua vez, se chamava "O telefone ocupado: uma resposta".

Ah, pai; o telefone não pára de tocar
Conforme as pessoas ligam de todos os lugares, cantando a sua glória
Falando de sua grandeza, de seus talentos
Com suspiros no coração e lágrimas sem fim
Uma tragédia, uma pena que você nunca sentiu
O amor e a estima de todos
E eu devo perguntar a eles: será que tudo isso não deveria ter sido dito faz tempo
Para a pessoa que ainda precisava ouvi-lo e que ainda... não sabe?
Esta é a ironia da raça humana: nosso pecado é a espera
Nós somente dizemos o que sentimos quando já é tarde demais.

Quando terminei de escrever o poema, saí de um estado mental que alguns chamariam de devaneio – e outros, de torrente –, mas que eu sentia ser algo mais parecido com um transe. Olhando para o papel sobre o meu colo, sacudi minha cabeça, sem acreditar. Eu não estava incrédula por ter escrito um poema (eu escrevia poesia desde os oito anos de idade); também não estava atônita por ter escrito um poema logo durante a shivá. Não, não era nada disso que me fazia suspirar de admiração com a autoria: o que me fazia tremer de medo era o fato de que eu, Yitta Halberstam, com quem todos implicavam devido ao iídiche mal falado; que mal sabia escrever uma simples frase na língua de seus antepassados, havia acabado de escrever um poema inteiro em iídiche.
Meus pais sempre falaram em iídiche um com o outro, mas quando eu era pequena, em Pittsburgh, eu fiquei muito confusa com a dissonância das duas línguas: o iídiche usado exclusivamente em casa e o inglês, no resto do mundo. Quando eu tinha dois anos e meio e ainda mal sabia falar algumas palavras em ambas as línguas (como as coisas mudaram!), o pediatra recomendou que minha mãe usasse exclusivamente o inglês ao falar comigo, já que eu parecia estar confusa.. Em apenas algumas semanas, eu já falava frases completas em inglês, mas o padrão já estava estabelecido e meus pais nunca mais voltaram a falar em iídiche comigo.
Ainda assim, aqui estou eu hoje, com 33 anos, olhando para o primeiro poema que eu escrevi em iídiche e que, estranhamente, estava impecável.
Eu pisquei. Estava assustada, assombrada. Como isso tinha acontecido? Eu não conseguia entender a mim mesma. Mais tarde, naquele mesmo dia, quando mostrei para minha mãe e meus irmãos, eles me olharam com suspeita. Eu não era capaz de escrever aquilo em iídiche – eles sabiam disso tanto quanto eu. Mesmo assim, todos viram quando eu me recolhi sozinha em meu quarto e reapareci com um poema. Estava claro que ninguém havia me ajudado – então de onde havia surgido aquele poema?
Dois dias depois, eu estava mais uma vez na cozinha durante um intervalo entre as visitas quando comecei a inspecionar o lugar com novo interesse. Afinal, era ali que meu pai sempre trabalhara. Aquela cozinha caseira fora elevada em significado e importância: ela havia se tornado um santuário. E agora eu passeava por aquela cozinha de sempre com um olhar renovado, e percebi algo que eu nunca havia notado antes: o abajur de meu pai. Era um abajur de estilo antigo, que iluminava os manuscritos dele enquanto ele trabalhava e que havia sido empurrado para um canto. Eu achei que aquilo parecia muito desolador. O que acontece com os pertences de um homem depois que ele se vai?, pensei. Será que, de alguma forma, eles também sentem a perda?
Meu estado mental de dois dias atrás voltou. Mais uma vez, eu fora transportada para outro universo, sob a influência de uma elevada consciência que me envolveu. Mais uma vez, como em um transe, eu me levantei, peguei um papel e uma caneta e fui para o quarto, onde escrevi um segundo poema, desta vez chamado "O Abajur". Eu escrevi:

O abajur que meu pai usava está sentando shivá sozinho
Ninguém presta atenção ao seu lamento; ninguém vê o seu suspiro.
Ele não compreende aonde foi seu amigo; o homem com quem eraprofundamente ligado
O homem com as palavras de fogo: onde será que ele está agora?
Era sua brilhante luz que ajudava o homem a criar
Essa era a sua missão de vida, iluminar.
A parceria, porém, de repente, acabou
E, dos dois, somente a luminária ficou, uma lembrança sem vida.
O seu objetivo, para o qual nascera, estava terminado
E agora ele é empurrado para um canto, esquecido e abandonado.
Ninguém o vê, ninguém precisa dele, ele está machucado
Contra a sua vontade, sua missão foi concluída.
A lâmpada se extinguiu; e sua luz se foi.
A luz de meu pai se extinguiu
E agora estamos envoltos por uma noite sem fim.

Quando terminei o segundo poema, olhei para ele ainda mais surpresa do que quando eu escrevera o primeiro. Mais uma vez, ele havia sido escrito em um iídiche literário, um iídiche que eu não sabia, um iídiche que eu não possuía. Se não fora eu quem escrevera, então quem o teria feito?
Uma semana depois, o Algemeiner Journal, um semanário em iídiche no qual meu pai trabalhara tanto como editor como colunista, publicou meus dois poemas. Todos aqueles que não eram meus amigos íntimos e que não sabiam do meu histórico lingüístico me parabenizaram e elogiaram o trabalho. Mas aqueles que me conheciam mais intimamente, e que já haviam me escutado falar naquela mesma língua que estava agora impressa no papel, me abordaram pelas ruas do Brooklyn céticos.
O confronto acontecia mais ou menos assim:
— Está bem Yitta, eu já ouvi você falar em iídiche. E eu sei que você nunca escreveu um só poema em iídiche. Então, fale a verdade... quem escreveu os poemas ?
E, já tendo me perguntado essa mesma questão nas noites escuras em que pensava em meu pai, eu só poderia responder a todos com aquilo que eu sabia ser a verdade absoluta:
— Meu pai.
A Cabala afirma que, durante os sete dias da shivá, a alma daquele que partiu vagueia pela sua casa, para observar os membros de sua família em uma última demonstração de saudade e para tentar garantir o bem-estar deles. O espírito ainda não está em transição e, de uma maneira misteriosa, está presente com a família enlutada.
Ao final do período de shivá, há um costume entre os judeus ortodoxos de sair da casa e dar uma volta em torno do quarteirão, acompanhando a alma do falecido que parte do domínio de sua família para sempre.
Eu nunca escrevera um poema em iídiche antes da morte do meu pai, nem escrevi depois. Ao pensar em todas as possibilidades racionais de como palavras que eu mal sabia e quase nem reconhecia poderiam ter sido escritas por mim, eu só consegui pensar em uma explicação que fizesse sentido: os poemas eram de autoria de meu pai, seu último grande esforço criativo e sua maneira particular de me dizer adeus.

Yitta Halberstam






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