quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O Princípio do Fim




Shemot (Êxodo 1:1-6:8)



No início do segundo livro da Torá, tomamos conhecimento da escravização e das atribulações dos filhos de Israel na terra do Egito. O verdadeiro acontecimento do êxodo do cativeiro ocorre muito depois. No entanto, "Êxodo" foi o título dado ao livro como um todo, numa antiga tradução grega e dela traduzido para todas as línguas europeias. Na tradição judaica, o livro é conhecido como Shemot (Nomes), uma alusão ao versículo inicial do livro: "E estes são os nomes..." Há, no entanto, indícios de que os judeus, nos tempos antigos, também se referiam a ele, em hebraico, como o Livro do Êxodo do Egito, Sêfer Ietsiat Mitsráyim, ou como Sêfer Hagueulá, o Livro da Redenção.

Os dois títulos do segundo livro da Torá são mais do que simples designações técnicas. O fato de o Livro da Redenção começar com uma lista de nomes, os dos líderes das tribos de Israel, mostra que os nomes desempenharam um papel importante no processo de libertação da escravidão egípcia. O que há em um nome? Um mundo inteiro – de cultura e tradição.

Um dos principais fatores que manteve os filhos de Israel unidos como um povo e os fez merecer a libertação foi, de acordo com antigas fontes rabínicas (Mechilta, Vaicrá Rabá etc.), o fato de não mudarem seus nomes hebraicos originais, tentando uma aculturação com a sociedade egípcia. "Vieram ao Egito como Ruben (Reuven), Simão (Shimon) e Levi – e
assim permaneceram."

Segundo a sabedoria bíblica, um nome representa a personalidade de seu portador, assim como as aspirações e orientação daqueles que o deram. Por minha vida, não entendo por que, atualmente, judeus bons e religiosos, ao contrário de seus antepassados submetidos à servidão egípcia, rejeitam nomes hebraicos lindos e significativos para si mesmos e seus filhos. Jamais esquecerei o choque que tive quando, em minha primeira viagem ao exterior, conheci eruditos rabinos ortodoxos, atendendo pelos nomes de Paulo e Pedro.

Quando Jacob abençoou seus netos nascidos no Egito, dizendo: "Seja chamado neles meu nome, e o nome de meus pais Abrahão e Isaac" (Gênesis 48:16) – ele queria que fossem chamados de Jacob ou Israel e não Júlio ou Isidoro; Abrahão ou Isaac e não André ou Inácio, ou outros semelhantes, que poderiam ser associados a não-judaísmo e até anti-judaísmo.

O principal tema de todo o segundo livro da Torá é, todavia, o Êxodo – o clímax de um processo de libertação que evolui a partir do início do livro.

Atribui-se a duas mulheres, cujos nomes aparecem uma única vez na Bíblia, o mérito de terem aberto o caminho para a liberdade:

E o rei do Egito disse às parteiras hebreias, cujo nome da primeira era Shifrá, e o nome da segunda, Puá. E disse: "Quando servirdes de parteira as hebreias, vereis sobre os assentos; se for filho, o matareis; se for filha, viverá." Mas as parteiras temeram a Deus e não fizeram como o rei do Egito lhes havia falado, e deixaram os meninos viver. (Êxodo 1:15-17)

Com seu ato heróico de desobediência à lei, duas obscuras mulheres, ao desafiarem as ordens imorais do poderoso rei, desencadearam um processo de libertação que teve repercussão universal e implicações duradouras. O êxodo jamais teria ocorrido não fora esse primeiro ato de resistência ao mal por Shifrá e Puá.

É interessante notar que a primeira vez que os filhos de Israel são chamados de Am, "um povo", é pelas palavras do Faraó. O primeiro a tomar consciência da identidade dos hebreus, como uma nação, não foi qualquer um deles, e, sim, seu arquiinimigo, o novo rei do Egito, que adverte seu próprio povo: "Eis que o povo dos filhos de Israel é mais numeroso e mais forte que nós!" (ibid.1:8). A história mostra, repetidas vezes, que os filhos de nossa nação não reconhecem sua própria força, senão quando apontada por seus inimigos, que a reconhecem e a temem.

O rei do Egito deve ter compreendido o imenso potencial – tanto em termos de número, como de força – dos filhos de Israel escravizados, como um "povo" autoconfiante, quando de seu breve contato com as duas parteiras hebreias. Como ousaram desobedecer às suas ordens?! Isso sem dúvida não era comum no antigo Egito: deve ter sido a primeira vez que o poderoso rei se defrontou com tamanha desobediência. Percebeu, naquele momento que a força de desafiar o rei representava um imenso movimento de resistência, que transformaria, certamente, a massa de escravos em um povo unificado e forte.

Outra interpretação da história das duas parteiras realça uma questão acadêmica, objeto da preocupação de muitos nestes últimos anos. De acordo com essa interpretação, "parteiras hebreias" não significa que elas mesmas eram hebreias, mas que, na realidade, eram egípcias servindo como parteiras às hebreias. (Esse ponto-de-vista encontra adeptos entre muitos comentaristas, a partir de Philo, no século 1, passando pelo Midrash Tadshe, Abravanel na Idade Média, chegando aos exegetas modernos como Shadal e Malbim.)

Isso, no entanto, torna o ato dessas mulheres ainda mais heróico. Poderíamos compreender que mulheres hebreias reunissem toda sua coragem para desobedecer às ordens reais, recusando-se a matar crianças hebreias. Mas considerem o significado de seus atos, sendo Shifrá e Puá corajosas mulheres egípcias, opondo-se ao grande Faraó. Elas não disseram: "Meu país, certo ou errado."

O que fez com que esses primeiros "gentios justos", e aqueles que agiram de forma semelhante durante o Holocausto, fossem diferentes do restante de seu próprio povo? O que lhes deu coragem de resistir ao mal, mesmo com o risco de suas próprias vidas? A resposta encontrada na Bíblia (versículo 17) é que "as parteiras temeram a Deus e não fizeram como o rei do Egito lhes havia falado."

O que é esse "temor a Deus" que dá à pessoa a capacidade de resistir espiritualmente, permanecendo sozinho ao lado da justiça e da moralidade, em situações de perigo? Como se pode instilar tal virtude nos jovens?

A despeito de todas as pesquisas, nos últimos anos, sobre o fenômeno dos tão-pouco-numerosos "gentios justos" do Holocausto (especial menção deve ser feita ao trabalho do Reverendo Doug Heuneke, nessa área), a resposta a essas questões ainda não é clara. O caso das parteiras hebreias prova que indivíduos dissidentes podem resistir ao mal e assim começar todo um processo de libertação.





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