domingo, 26 de abril de 2015

JUDAÍSMO: UMA TEOCRACIA DEMOCRÁTICA

JUDAÍSMO: UMA TEOCRACIA DEMOCRÁTICA

Muitas tentativas têm sido feitas para formular uma abordagem coerente e sistemática da teologia judaica. Todavia, todas elas têm fracassado, pois o judaísmo nunca se preocupou muito com doutrinas lógicas. Ao invés disso, buscou desenvolver um corpo de práticas e um código de atos religiosos que estabelecessem um modo de vida religioso. É verdade que esses atos e práticas derivam de conceitos teológicos e morais básicos; porém, de forma muito significativa, essas teorias teológicas judaicas permanecem sempre ocultas, apreensíveis somente através das práticas religiosas a que deram origem. Por isso, grandes filósofos e eruditos do Talmud chegaram a um consenso maior em seu Minian Hamitsvot – a classificação dos 613 mandamentos religiosos que a Torá coloca para o judeu – do que em suas tentativas de apresentar os princípios judaicos básicos na forma de artigos de fé. Moisés Maimônides relaciona treze princípios básicos, porém Iossef Albo estabelece apenas três . Portanto, é inútil tentar descobrir um corpo de doutrinas articulado e organizado que possa ser caracterizado como uma “Teologia Judaica” no sentido pleno do termo. No judaísmo, crenças e teorias religiosas não podem ser separados da prática.

O primeiro judeu a procurar apresentar uma teologia judaica provavelmente foi o grande filósofo Filo de Alexandria (Philo Judaeus); no entanto, até mesmo ele estava mais interessado em uma filosofia do judaísmo – ou melhor, em uma filosofia da prática judaica – do que no simples dogma teológico. Filo não seguiu nem os estóicos, que consideravam a teologia um ramo da medicina, nem Aristóteles, que concebia a teologia como um ramo da filosofia. A seu ver, a teologia é parte do ramo mais elevado da filosofia – a Ética – e diz respeito ao culto a Deus e à regulamentação da vida humana de acordo com as leis Divinas da Torá. Portanto, em um certo sentido, Filo deu voz ao conceito judaico fundamental de que a teologia e as regras de conduta humana são praticamente inseparáveis.

Josefo, o grande historiador, ao definir o judaísmo para um mundo não-judaico, estava tão ciente desse conceito fundamental que sentiu a necessidade de cunhar um novo termo para expressar a singularidade da religião judaica. A palavra que escolheu foi “teocracia”, e ele escreveu: “Algumas pessoas delegaram poderes políticos supremos a monarquias, outros a oligarquias, e outros ainda às massas. Nosso legislador, Moisés, não teve atração por nenhuma dessas formas de constituição política, mas deu à sua constituição a forma que – se nos for permitida uma expressão forçada – pode ser chamada de teocracia”. Isto, ele explica, significa “colocar toda a soberania nas mãos de Deus”.

De acordo com os termos da própria definição de Josefo, a caracterização do judaísmo como uma teocracia é verdadeira. O judaísmo sustenta que a soberania do homem é dependente da soberania de Deus; que um homem deveria ver cada ato que desempenha como a realização do desejo do Reino dos Céus. Este é o significado das sempre repetidas determinações talmúdicas de que o homem deveria agir “de acordo com os Céus”, e tomar sobre si mesmo o “jugo do Reino dos Céus”.

Ao se aceitar isto como um conceito fundamental no judaísmo, torna-se claro por que é inútil aos pesquisadores do judaísmo histórico tentar descobrir ou investigar dogmas teológicos abstratos. A pesquisa deveria, isto sim, buscar desvendar os motivos religiosos que fundamentam o corpo da prática judaica e o conceito judaico de moralidade. A filosofia – ou se preferirem, a teologia – do judaísmo está contida em boa parte na Halachá – o sistema jurídico judaico – que se preocupa não com a teoria, mas primordialmente com a prática. Portanto, é na Halachá que a filosofia do judaísmo deve ser procurada.

Infelizmente, esta não é a direção que a pesquisa moderna sobre judaísmo tem tomado. Ao invés de procurar explorar os motivos espirituais e religiosos que determinam o pensamento talmúdico, a erudição judaica moderna tem buscado explicar o judaísmo em termos que lhe são alheios e que não se aplicam a ele, e tentado enquadrar até mesmo aquelas práticas e rituais que definem o relacionamento do homem com Deus nos moldes das teorias sociológicas e econômicas atuais. De repente, um Sábio torna-se um “liberal” e outro um “conservador”; acredita-se que o primeiro tenha um modo de vida “progressista” enquanto o último é taxado de “reacionário”.

É claro que as divergências entre fariseus e saduceus estavam, de certo modo, relacionadas à vida social e econômica da comunidade, e o mesmo vale para as diferenças haláchicas no meio dos Tanaím (Tanaítas), os Sábios mishnáicos. Entretanto, na maioria das vezes essas divergências não surgiam de causas sociais ou econômicas, tampouco os que divergiam estavam interessados em defender uma classe social contra a outra. Os Tanaím estavam interessados, acima de tudo, em criar um código de vida através do qual o homem, em suas práticas diárias, pudesse servir melhor a Deus, segundo um sistema tal que os deveres do homem para com seus semelhantes fossem parte integrante dos seus deveres para com seu Criador.

Extraído do prefácio de
A FILOSOFIA DO TALMUD - O Caráter Sagrado da Vida Humana na Teocracia Democrática Judaica
de Samuel Belkin
http://www.sefer.com.br/details/3119/filosofia-do-talmud

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