quinta-feira, 4 de junho de 2015

O vegetarianismo e a Torá

O vegetarianismo e a Torá
Qual é a atitude judaica em relação ao vegetarianismo? Apesar da predileção por jantares de carne no Shabat e nas festas, será que é espiritualmente preferível que nos alimentemos somente com arroz, feijão, couve-flor e cenouras?
Com a criação de Adão, o Todo-Poderoso ordena à humanidade, bem como aos animais, que comam apenas frutas e vegetais. Somente após o dilúvio e o resgate de Noé é que Deus, depois de abençoá-lo para que seja frutífero, se multiplique e volte a preencher a terra, declara que, de agora em diante, lhe é permitido comer de cada ser vivente que se move.
Eu diria que esta permissão é, na verdade, uma concessão. Ela é manifestada após a afirmação do Eterno de que “o impulso (iétser) do coração do ser humano é mau desde sua mocidade”, a inescapável conclusão do Eterno como resultado da perversão e violência que imperavam antes do dilúvio. O Rabino Joseph B. Soloveitchik dizia que a Torá não somente registra o caminho do homem buscando compreender o Divino, mas documenta também Deus em Sua crescente compreensão, e mesmo desapon-tamento, com a fraqueza e corrupção do ser humano.
Essa concessão a Noé é seguida imediatamente pela ordem de não comer um membro de um animal vivo ou de beber sangue, de não cometer suicídio e de não tirar a vida de outro ser humano. Com efeito, Deus reconhece que já que o impulso e a habilidade de destruir se mostraram um elemento da personalidade humana, que pelo menos ele fosse expresso no tirar a vida de um animal, e não na destruição de seres humanos.
Visto sob esta perspectiva, as leis de cashrut servem para limitar nosso consumo de carne, como um lembrete da ambiguidade moral envolvida no próprio consumo dela. Muitos animais, pássaros e peixes são completamente proibidos, e aqueles que nos são permitidos precisam ser abatidos de uma forma muito mais espiritual e humana do que a maneira pela qual os animais são normalmente mortos por todo o mundo.
Na verdade, as leis de cashrut, conforme expressas na Bíblia, estão certamente relacionadas à elevação de nossa sensibilidade para com o mundo animal. São principalmente os animais carnívoros e as aves de presa que nos são proibidos. Além disso, o consumo de sangue é proibido. Mesmo a carne que nos é permitida deve ser salgada e enxaguada a fim de remover tanto sangue quanto possível, porque “sangue é vida“. Finalmente, carne e leite não podem ser comidos juntos, sendo costume entre os judeus ashkenazitas da Polônia manter um intervalo de 6 horas entre comer carne (mesmo que seja de ave) e fazer uma refeição de leite, pois “não cozinharás a carne do filho embebida no leite da mãe” (Êxodo 34:26). Isto é um apelo à compaixão e à sensibilidade estendida ao mundo animal.
O primeiro Rabino-Chefe de Israel, o Rabino Abraham Isaac Hacohen Kook, percebia, mesmo nessa orientação, uma censura àquele que se alimenta de carne. Ele explica (de acordo com a interpretação do Nachmânides) que, quando os judeus ainda estavam no deserto e o Santuário (lugar dos sacrifícios) estava literalmente no meio do povo, a única carne que se permitia comer era a dos sacrifícios. Obviamente, isso limitava a quantidade de carne usada para alimentação. Somente depois que deixaram o deserto e devido ao fato de muitos israelitas morarem longe do Santuário é que foi permitido comer carne não proveniente dos sacrifícios, mas somente de acordo com as leis dacashrut.
Além disso, o Rabino Kook explicou que nas próprias palavras da Bíblia encontra-se uma advertência:
“Quando o Eterno, teu Deus, expandir tuas fronteiras... e disseres ‘comerei carne’ porque tua alma está ávida por carne...”
É somente por causa de tua “avidez” por carne – sem dúvida, um comentário nada lisonjeiro – que Deus permitiu aos israelitas comer carne. Por fim, ele diz que, no futuro período do Terceiro Templo, voltaremos ao ideal original de vegetarianismo e a única oferenda no Templo Sagrado será de grãos – a oferenda de Minchá.
Explicando o sacrifício animal de uma forma geral, o Rabino Kook defende que o mundo animal recebe seu ticun(conserto espiritual) ao ser trazido ao altar do Eterno, uma vez que, sendo desprovido de razão, os animais não podem se elevar, exceto por meio de algo que seja feito com eles. No futuro, entretanto, quando “a terra estará repleta do conhecimento do Eterno, como as águas cobrem o mar” (Isaías 11:9), uma abundância de conhecimento se espalhará e alcançará até a vida animal. E, como nossos profetas ensinam que durante a Era Messiânica “Não causarão dano e nada destruirão em Meu santo Monte” (ibid.), é inconcebível que a vida animal seja destruída para servir ao Divino. Nesta época, “as oferendas (de farinha e vegetais) de Judá e de Jerusalém serão prazerosamente aceitas pelo Eterno” (Malaquias 3:4).
Uma noção similar pode ser encontrada nos escritos do Rabino Chaim David Halevi. Ele afirma – e cita o Rabino Kook como prova para seu argumento – que este será apenas o primeiro estágio da Era Messiânica, que incluirá sacrifícios animais no Terceiro Templo, uma vez que no primeiro estágio messiânico o mundo funcionará e existirá como é agora, incluindo os pecados e a necessidade de sua expiação. Entretanto, uma vez que a Era Messiânica alcance o seu clímax espiritual de arrependimento universal, os sacrifícios de animais se tornarão uma mera recordação do período anterior, mais primitivo. Afinal de contas, ele escreve, se não há pecado, qual é a necessidade de sacrifício animal para expiação?
O Rabino Halevi conclui que, no período do Terceiro Templo, a Presença Divina será revelada em todo Seu esplendor e glória, e não haverá outro sacrifício além da oferenda de Minchá, composta de farinha e óleo.
Há um costume muito bonito que consiste em cobrir a faca com a qual se corta a chalá enquanto recitamos a Bênção de Graças Após as Refeições, a fim de destacar nossa repulsa por implementos que podem ser usados para matar e destruir. Que chegue logo o tempo em que as espadas se transformarão em arados e as lanças em foices, quando não haverá mal nem destruição no mundo inteiro e as únicas facas serão para fatiar a chalá a ser comida com leite e mel – não com carne – em homenagem ao Shabat e às festas!
Extraído da obra Luzes da Torá (Gênesis): Sobre Vida, Amor e Família, do Rabino Shlomo Riskin.

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